dezembro 17, 2021

 
 

Quem não conhece a pagela sobre o Beato Redento da Cruz?
Este courense, nascido no lugar de Lizouros, em 1598, paróquia de Santa Maria de Cunha, outrora Santa Maria da Colina, recebeu o nome de Tomás Rodrigues da Cunha e viveu a sua meninice e tenra adolescência por entre gente pobre e fidalga.
Como relata o opúsculo, de 1928, denominado “O Beato Redento da Cruz. Carmelita Descalço," deixou ruralidade de Coura e assumiu, corajosamente, a condição de mártir nas orientais terras do império português. Tudo aconteceu no asiático lugar de Achém, próximo de Malaca, uma das longínquas feitorias que as navegações tornaram possíveis.
Abandonou tudo e todos, despojando-se de bens terrenos, bebendo todo o fervor religioso, que apenas os primeiros filhos de tais casas, abrasonadas ou não, poderiam dispensar, já que deles dependia a manutenção dos privilégios através da não dispersão do património.
Nascido na sua fidalga condição, de onde brotaram famílias sem nunca, em tempo algum, terem em sua geração fama alguma de mouro, nem de judeu, e como filho segundo, de instrução rudimentar, sem sinal de amor às letras, mas afável, comunicativo, conceituoso, diz ainda o narrador, Redento da Cruz tinha em suas vigorosas veias sangue de conquistadores e guerreiros, que dele fizeram soldado embarcado das naus da Índia, tendo por primeiro destino a outrora viçosa cidade de Goa.
 Destemido soldado, de muitas batalhas, foi nomeado capitão e logo recebeu o chamamento, pela divina graça, para se alistar na milícia de Cristo, no convento de Carmelitas Descalços, descalçando-se, assim, da vida mundana, desapossando-se do seu nome, e abraçando, com extrema dedicação religiosa, a perfeição monástica.
Redento da Cruz – pequena estatura, rosto moreno, comprido, magro, barba rala e negra, como o cabelo, fronte calva e enrugada, ardente de martírio, tal como os Carmelitas o descreveram –  foi aprisionado, escravizado e morto, por setas, espadas e lanças envenenadas, no ano cristão de 1638. Mais tarde, pelos idos anos de mil e novecentos, foi declarado Beato.
Muito mais se pode ler no tal opúsculo, por exemplo, o registo pormenorizado da sua coragem perante a morte, o seu desprendimento terreno e a sua extrema religiosidade. Porém, há uma questão, nesse dito livrinho, que custa a aceitar, e que vai contra o seu último pedido, embora reproduza a imagem oficial que foi cinzelada pelos Carmelitas.
O retrato de Redento da Cruz é de meio corpo, de rosto saliente, mostrando uma mão com pingos de sangue, brotando de uma espada, quando ele mesmo disse: “Se eu for martirizado, pintai-me com os pés fora do hábito para que todos entendam que sou Carmelita Descalço.”

novembro 25, 2021

 


Coincidências

No meu percurso de estudante, tive a Português, no curso geral dos liceus, mais precisamente do 3º ao 5º anos, se me permitem que ainda use essa terminologia escolar, um professor-padre-escritor, chamado João Gomes Gonçalves, literariamente conhecido pelo pseudónimo Joãozinho Lã-Branca.

Com este nome escreveu, no espaço de três anos, “Cartas de Ternura, Pilhéria e Saudade,” “O Verde e o Vermelho,” e “Pingos de Sangue no Caminho,” o último também declarado “romance para maiores.”

Li, decerto, os três livros enquanto fui seu aluno, lembrando-me das suas aulas, animadas por uma densa utilização de adjetivos, enchendo as frases de muitos sentidos, em sequências breves, mas profundas, acompanhados de ideias recriminativas da nova sociedade que despertava.  

Tive a sorte de ter um professor com método e dotado de ideias, promovendo a personalização do aluno e dando asas a uma escrita criativa, em que o uso do dicionário era obrigatório, em busca de outra roupagem para aquilo que comummente se diz, de modo simples, como ar que se respira.

Li o dito “romance para maiores” em tempos que ainda não tinha a maioridade, pelo que muitas das suas marcantes imagens e ideias se perderam pelo caminho. Por estes dias, na escrita de um outro texto, precisei de reler esse livro e procurei-o online, já que o exemplar comprado, em escudos, desaparecera, possivelmente por ter sido emprestado a alguém mais próximo.

Não precisei de fazer a sua encomenda. Apenas estava disponível num alfarrabista de Braga.

 E lá fui. Habitava as estantes vestidas de muita velhice. Comprei-o. Paguei, mas agora em euros, olhando com satisfação para a capa que tão bem conhecia, como se o filho pródigo estivesse de regresso a casa.

Quando o recebi, ávido, sossegado, reparei que tinha uma ficha de catalogado, na qual constava o autor e um número. 555. Sim, três cincos.

Tudo normal?

Talvez!

Por que não?

Porque havia ali uma grande coincidência. Recomprei o livro, escrito por um professor meu, o de Português, que na altura lecionava no Instituto Missionário Espírito Santo, em Fraião, Braga. E nessa altura eu usava roupa identificada, ocultamente, pelo mesmo número que serviu de catalogação ao alfarrabista.

Peguei, enigmático, no livro, desci a rua dos Chãos e fui à “Brasileira”, um café centenário do coração de Braga.

A pessoa amiga que procurava, da Universidade da Madeira, estava reunida com outra pessoa, que conheço tão bem: o amigo Doutor Carlos Subtil, acompanhado da sua esposa e do seu irmão, também académico.

Falei-lhes da coincidência do livro.

No final, o Doutor José Subtil disse-me que também ele andara no mesmo Instituto, no qual não nos cruzámos.

E mais falámos sobre coincidências!

março 29, 2020



Não sendo o território de Coura uma terra de vinha, a não ser daquela que justifica a ação individual para consumo doméstico, nem de conventos, porque desse modo a doçaria manteria a secular tradição de gastar os ovos, a gastronomia – ou esse saber feito experiência da cozinha e da arte de saborear – tem um lugar reservado em cada courense, de paladar ainda mais gostoso, se for apreciada pela memória transmitida ao longo de gerações, verdadeiros artífices de uma identidade que cunha uma terra como algo que é verdadeiramente seu.
Se Aquilino Ribeiro literariamente revelou as papas de milho e as trutas do rio Coura, que refletem o pão dos campos e a água cristalina e fria dos afluentes ribeiros que correm no concelho, se Narciso Alves da Cunha exaltou a terra fria do milho, do centeio e da batata e a terra quente dos afetos, se outros escribas falaram de várias iguarias, não posso deixar de degustar o que ainda está enraizado no meu paladar
Por mais que a universalidade o justifique como uma das principais sobremesas, o arroz doce de Coura, feito nesse tempo com o leite do dia da Casa da Veiga e com os ovos ainda quentes das galinhas livres do quinteiro, amarelado na sua cor natural de uma ruralidade sadia, ainda hoje tem um paladar divinal.
Coze-se o arroz em leite, acrescenta-se uma casca de limão e um pau de canela, adoça-se com açúcar e no final juntam-se as gemas e salpica-se de canela, já na travessa.
 Mais sabor tem ainda no lume brando do fogão a lenha e nas mãos calmas e experientes de nossas mães, como se fosse a iguaria de deuses imaginados em seus repastos de humanos gulosos.
Também na doçaria, o biscoit0 de milho era obrigatório pela Páscoa e pelos dias festivos. À farinha de milho, saída dos moinhos do rio, juntam-se os ovos caseiros, desenha-se meticulosamente em “S” a massa e leva-se, de seguida, ao forno para ganhar a necessária robustez e consistência, conservando-se a iguaria por longos meses.
O caldo adubado tem um lugar reservado nessa memória gastronómica da terra de Coura, abundante em carne de porco e colocada no frigorífico da salgadeira, adormecida em sal, passada por vinho tinto e colorau. Na panela grande que alimenta uma mesa de comensais diários, fervem-se os legumes frescos da horta, robustecidos pela batata, juntamente com um osso da salgadeira, e depois o sabor é digno das palavras mais elogiosas.
E que paladar tinha o bolo do tacho, confecionado na simplicidade das gentes de Coura, com a farinha milha predominante, podendo ser acrescentada a farinha triga, com a água pura das montanhas, com o toucinho da salgadeira e da chouriça defumada, com o sal, e depois tudo vai ao tacho (frigideira) para “aprontar”, pela força do calor da lenha que derrete o unto de porco.
Comia-se pelos dias fartos e alegres de trabalhos agrícolas e guardava-se no paladar de uma inigualável iguaria.

março 19, 2018

Rede(s)


Vivemos os dias de correm de um modo diferente, talvez mais isolados a nível individual, cada um na sua casa de interesses, mas muito mais integrados em comunidades de partilha de ideias, imagens e emoções, como se verifica pelo uso das redes sociais.
Se o blogue passou de moda, embora a resistência de alguns seja de registar, facebook e companhia aí estão para nos dar uma outra vida. Ainda por estes dias, pelas imagens da Cecília, uma fotógrafa do quotidiano courense, como tantos outros, pude ver o rio Coura correr desenfreadamente sobre o penedio que existe desde a Ponte da Peideira até ao fim do lugar de Santa. Apesar de estar longe, estive lá, de facto, e como essas imagens me levaram para os invernos rigorosos da infância!
Se este é o lado bom das redes sociais, o lado negativo está no modo como as empresas de gestão de dados brincam com a nossa individualidade e, mais ainda, como nos criam uma mente de colmeia, ou seja, estamos umbilicalmente ligados ao acontecimento, mais precisamente àquele acontecimento que os outros desejam para nós, veja-se o exemplo aberrante das “notícias falsas”, que só por si geram uma realidade que não é verdadeira, tornando-se ela própria alternativa e convincente, aquilo a que se chama sociedade da pós-verdade.
Lendo o livro “Tecnologia versus Humanidade”, recentemente publicado, escrito por um teólogo europeu, a realidade das redes sociais é tremendamente perigosa, pois adoramos estar ligados uns aos outros, como diz o autor, e alguns de nós gostam da emoção de cada gosto, mas daquele gosto que seja sincero e pessoal e não clicado por uma máquina ou empresa.
E, seguindo as ideias do mesmo autor (Gerd Leonhard), quando damos as nossas informações pessoais, a troco de uma excitante plataforma global gratuita, a uma empresa que a controla, como é caso do Facebook, não assume qualquer responsabilização por aquilo que fazem com essas migalhas digitais que recolhem sobre nós.
 Quer dizer, assim, que quando estamos em rede, quando publicamos seja o que for, ou mesmo quando fazes um clique em “gosto” ou quando escrevemos um comentário ou fazemos uma partilha, há toda uma economia subterrânea que está a funcionar, uma vez que o seu modelo de negócio é vender-nos a quem der mais.
E depois são telefonemas de empresas disto e daquilo que entram nos nossos telemóveis, publicidade personalizada que nos aparece no ecrã do computador e do iPad, enfim, toda uma panóplia de estratégias de sedução da qual dificilmente nos libertamos, a não ser que tomemos a decisão de desligar-nos das redes sociais, ou mesmo de lá nunca entrarmos, mas, para o bem ou para o mal, essas redes já estão entranhadas no nosso modo de viver.
É como uma teia: bonita, no orvalho da manhã, e tão perigosa, paras as presas de uma aranha paciente.

junho 15, 2015

Exames nacionais



Classificar alunos de 1 a 5 é penalizador?
GRAÇA BARBOSA RIBEIRO e CLARA VIANA, 14/06/2015, PUBLICO
 
A escala de 0 a 100% foi introduzida no ensino básico após o 25 de Abril de 75 no âmbito do processo de democratização da escola. Será que quatro décadas depois está, pelo contrário, a prejudicar os mais fracos? É o debate que está na ordem do dia.
 
Um sistema de classificação que foi criado para evitar a discriminação de alunos poderá, actualmente, estar a prejudicar os estudantes que têm mais dificuldades? Há quem acredite que sim e defenda alterações, como o presidente do Conselho Directivo do Instituto de Avaliação Educativa (Iave), Hélder de Sousa. Mas também quem considere que a desadequação de uma escala que serviu 40 anos foi provocada, precisamente, pelo actual Governo e pela introdução dos exames no 4.º e no 6.º anos de escolaridade.
No ensino secundário, os exames são cotados numa escala de 200 pontos, depois transposta para a de 0 a 20 valores. No ensino que hoje se designa como básico, até ao 9.º ano de escolaridade, o sistema é outro. “Em 1976, num contexto de democratização da escola, criou-se o chamado ensino unificado. E, precisamente para esbater as diferenças entre as crianças e reduzir aquilo que era considerado um estímulo à competitividade, instituiu-se a classificação por níveis, de 1 a 5”, explica José Pacheco, especialista em Educação, da Universidade do Minho.
Desde então, do 5.º ano ao 9.º os alunos são avaliados de acordo com uma escala de 0 a 100 que depois é transposta para níveis: quem tem entre 0 a 19% fica no nível 1; de 20 a 49% no nível 2; de 50 a 69% no nível 3; de 70 a 89% no nível 4 e acima dos 90% no nível 5.
Aquela escala torna-se penalizadora, considera o presidente do Iave, Hélder de Sousa, na medida em que um aluno do ensino básico que tenha a classificação interna de 2 precisa de ter 4, ou seja, mais de 70% no exame, para ter positiva. Isto enquanto no secundário um aluno que tenha a classificação 8 (que é o equivalente aos 40%, ou seja, ao nível 2 do básico), apenas precisa de ter 13 (ou 65%, que representaria o nível 3 no básico) para passar. Para os alunos que têm mais dificuldades, que vão com 2 ao exame (que tem um peso de 30 % na nota final”) isto é penalizador, considerou, em entrevista ao PÚBLICO. E clarificou: "Não faz grande diferença para o perigo de aluno com média positiva reprovar, mas para permitir que um aluno que está em dificuldade possa passar é mais exigente".
A perspectiva do presidente do Iave é coincidente com a de Manuel Oliveira, vice-presidente da Associação Nacional de Professores (ANP) que considera “objectivo” que a escala actual dificulta a recuperação de alunos que partem com negativa para os exames e diz que a questão está na ordem do dia. “A escala não mudou, mas passou a haver exames e também a noção, relativamente recente mas consensual, de que as retenções são prejudiciais para os alunos, para as famílias e para o sistema”, afirma.
Naquele contexto ( e também face aos incentivos do Governo ao sucesso) Manuel Oliveira diz ser favorável à alteração da escala, no básico, para 0 a 200. “Principalmente para o exterior – para os alunos e as famílias – é mais fácil explicar a subida de um 8 para 9,5 do que a subida de um 2 para um 3. Por outro lado, dar a um aluno que tem 40 e tal por cento o mesmo 3 que se dá a um estudante que tem 65% é criar uma cadeia de injustiças extremamente desmotivadora para as crianças”, comentou.
Fernando Nabais, presidente da recentemente criada Associação Nacional de Professores de Português (Anproport) frisa que as dificuldades em trabalhar com os níveis estão expressas no facto de os professores se referirem, quando falam com os alunos ou com os pais destes, em 4+ ou 3, por exemplo. E diz ser favorável à mudança de escala, não como medida de promoção do sucesso, "claro", mas de uma avaliação mais rigorosa.
É também semelhante o ponto de vista inicial de Manuel Pereira, da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), que comenta o assunto dizendo que uma escala que “permite atribuir o mesmo nível ao aluno que não quer saber da escola e ao que se esforça mas não chega à positiva tem de estar errada”. A sua proposta, no entanto, “não é a mudança de escala, mas a promoção de uma avaliação qualitativa até ao 6.º ano, a par de uma reforma do actual modelo de ciclos”.
Filinto Lima, dirigente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), nem sequer discute a questão. Diz-se “estupefacto com o ponto a que se chegou na tentativa de redução da escola a exames, números e percentagens”: “Querem resolver o problema do insucesso? Invistam em mais recursos, em mais apoios, em mais assistentes operacionais, em psicólogos, em turmas menores o que gastam com as retenções”, sugere.
É sensivelmente na mesma linha que Filomena Viegas, da direcção da Associação de Professores de Português (APP), e Lurdes Figueiral, presidente da Associação de Professores de Matemática (APM), analisam o problema. Ambas consideram que “a perversão foi introduzida com os exames no 4.º e no 6.º anos e com a alteração da avaliação no fim do 1.º ciclo de qualitativa para quantitativa”.
 

maio 11, 2014